Racismo. Tratar desse assunto com as crianças é sensível. O que falar, o que não falar, como ensinar? Como tudo na criação dos filhos, não existe fórmula pronta. O contexto da sua família, sua condição econômica, o lugar onde você vive – tudo influencia. Para alguns, falar sobre esse assunto é uma escolha. Para outros, não: algumas crianças vão aprender sobre isso enfrentando o racismo em seus cotidianos.
Então, como lidar? E por que mães e pais deveriam falar sobre essas questões com uma criança tão pequena? “O racismo não é do indivíduo. Não é meu, seu, da vizinha ou do chefe. Ele é um sistema. E a isso damos o nome de Racismo Estrutural: ou seja, ele é a base da estrutura social que vivemos. Através dessa estrutura, ninguém precisa ensinar outra pessoa a ser racista, porque isso se aprende silenciosamente cada vez que você vai à escola e não há negros nem entre seus colegas, nem entre os professores ou diretores, mas os cargos operacionais são todos compostos por pessoas negras. Sem precisar nos dizer nada, a estrutura já nos indica que há lugares para negros e há lugares para brancos.”
Quem explica é Fernanda Lopes, psicóloga especialista em Parentalidade e Perinatalidade pelo Instituto Gerar de Psicanálise e pesquisadora do tema racismo e parentalidade. Ela é nossa convidada para responder às dúvidas das famílias que nos acompanham nas redes sociais. O resultado você confere aqui embaixo.
E se eu não falar sobre racismo? Acho que assim ensino ao meu filho que todos somos iguais.
Nós falamos da diferença justamente para que todos possam ter direitos a iguais oportunidades, inclusive de sermos vistos com nossas particularidades! Porque o racismo não tem a ver com a diferença de cor, mas com a diferença de valores que damos para cada cor – quem nunca ouviu a expressão “cabelo bom e cabelo ruim”? Ou seja, podemos ensinar que todos são diferentes sim, e que ninguém é mais do que o outro porque tem olho dessa ou daquela cor, cabelo com essa ou aquela textura. Somos todos diferentes e isso é muito legal!
Será que falar da diferença entre negros e brancos não é estar sendo racista?
Não, na verdade não falar nada é que é ser racista. A pesquisadora Lia Vainer Schucman, que escreve sobre branquitude, diz que quando falamos que vemos todos como iguais, estamos vendo todos como brancos. Sugiro um experimento: abra o Google e coloque na caixa de pesquisa de imagens a palavra “bebê”, e veja o resultado! Depois me conte quantos bebês negros apareceram na primeira “página” da pesquisa!
Se a criança não percebe as diferenças raciais, devemos falar sobre o assunto?
O fato de uma criança não fazer nenhum comentário sobre a diferença de raça entre ele e um amigo não quer dizer que ela não perceba as diferenças. Até porque elas são visíveis, não são? Perceber a diferença não é um problema. Pelo contrário! Somos todos diferentes e é importante que possamos nos ver dessa forma. Só assim vamos começar a notar como temos poucos negros em posições de destaque, nos restaurantes, nas escolas, nas empresas… e daí poderemos produzir estratégias de equidade – de gênero, raça e classe, inclusive.
Devo explicar para uma criança de 5 anos o que é racismo ou fortalecer a ideia de respeito e igualdade?
Você deve explicar o que é racismo E assim estará fortalecendo a ideia de respeito e igualdade de direitos. E é importante falar que o racismo não está só no jeito como tratamos os negros, mas tem a ver com quantos amigos negros frequentam nossa casa, quantos negros temos em cargos de chefia na nossa empresa, quantos funcionários domésticos negros trabalham conosco, por que será que lá na periferia tem muito mais negros que aqui na vizinhança, quantas bonecas negras temos em casa e por aí vai…
Quais termos devemos ensinar: preto ou negro? Existe termo correto?
Depende do contexto cultural em que você está. Por exemplo: nos EUA a palavra nigro é uma grande ofensa racial por conta de fatos históricos deles, então foi adotado o termo “black”, que seria o nosso preto. Aqui no Brasil não tem resposta certa e é sempre bom perguntar o que a pessoa prefere. Entretanto, vale se questionar porque você quer usar a cor de alguém para falar dela. Porque não fazemos isso com brancos, não é mesmo? Não falamos a estagiária branca, o homem branco bonito, a mulher branca inteligente… Agora, importante: se for dizer a raça da pessoa, que falemos sem medo: negro/negra/preto/preta. Não morena, não mulata, não parda…
Sempre me vi como morena e agora tenho dúvida se isso é racismo. Por que será que não me vejo como negra?
Tem uma frase bonita que diz que a gente nasce negra duas vezes. O dia em que a gente nasce, e o dia em que a gente descobre que é negra. E não se sinta só: essa é uma dificuldade comum entre pessoas negras de pele clara! Tanta coisa ruim é associado aos negros, que é difícil querer pertencer a esse grupo, não é mesmo? Tem uma frase da música Ismália do músico Emicida que diz “ela quis ser chamada de morena, porque isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena”. Nesse processo que você está, te sugiro buscar artigos sobre colorismo. E assistir a esse vídeo maravilhoso.
E quando um dos pais nem percebe o próprio racismo? E a filha, já adolescente, tenta mostrar para ele o problema e é rechaçada?
Situação delicada mesmo. O conflito de gerações ainda intensifica a situação, imagino. Uma boa estratégia pode ser conversar com irmãos ou com a mãe, para saber o que eles pensam a respeito. Talvez, se você contar para ele que somos todos racistas, e que o racismo é estrutural, quem sabe ajude. Recomendo também duas palestras TedxTalks que podem te ajudar nessa construção. Você pode acessar aqui e aqui.
Como ajudar uma criança a identificar o racismo?
Depende se estamos falando de crianças negras ou de brancas. Para crianças brancas, podemos falar disso sempre que ela expressa as preferências dela sobre os bonecos, por exemplo: “caramba, você prefere a boneca loira de olhos azuis, por que será?”. Pronto, já temos assunto para dias! Para crianças negras, caso aconteça algum episódio racista na escola, por exemplo, é importantíssimo nomear para a criança o ocorrido como racismo e explicar o que será feito em função disso: ir na escola, ligar para a mãe do coleguinha, etc. para que ela saiba que isso é violência e que não devemos nos calar.
Como introduzir o assunto para uma criança branca sem contato com o assunto?
Podemos inserir alguns questionamentos, por exemplo: “você já reparou qual a cor da pele das princesas nos filmes? Você já reparou como são os cabelos dela? Por que será que é sempre assim?! Por que será que não tem nenhum príncipe parecido com (nome de algum colega negro)? Quando você desenha uma pessoa, por que você sempre pinta a pele dela dessa cor? Por que será que todas as babás aqui do prédio tem a cor da pele diferente da nossa?”. São tantas perguntas, daria um bom roteiro para o programa Show da Luna 😉
Como e quando abordar o assunto com as crianças?
Depende da idade. Depende se estamos falando de uma criança negra ou de uma criança branca. De modo geral, gosto muito de apresentar o tema via cultura. E, sempre que posso, questiono porquê todas as princesas ou heróis dos desenhos são brancos, por exemplo. Fazendo uma aposta que assim eles irão se sensibilizar e se questionar onde será que estão os negros no dia a dia deles.
A partir de qual idade podemos tratar do assunto?
Eles vão entender conforme a maturidade deles. Um adolescente consegue compreender o que é racismo estrutural, por exemplo. Uma criança pequena, por sua vez, já pode entender que não existe lápis cor de pele – mas aí também é importante prestar atenção que quando nomeamos blusa/batom/sapato/vestido bege de nude, estamos reproduzindo a mesma lógica do lápis de cor.
Apontar diferenças (como a cor) em livros e filmes, é uma forma de iniciar o assunto com os pequenos?
Sim, e apontar quando não há diferenças, também. Por exemplo: “nossa, nesse jogo só tem personagens brancos! Por que será?”
Sou negra, meu filho nasceu branco de olho azul. Logo vi o quanto ele era valorizado por isso, o que me remeteu ao racismo que sempre vivi e foi bastante difícil.
Muito difícil! Existe um livro muito bacana que trata sobre esse tema chamado Famílias Inter-raciais: tensões entre cor e amor, acho que vai te ajudar!
E se a criança verbaliza que não gosta de negros? Como acolher e instruir?
Precisamos lembrar que o racismo não um problema moral, mas sim uma estrutura. Então, vale a pena perguntar para ela porque ela não gosta da cor do colega negro e ver o que ela te diz. E falar que muitas vezes a gente não gosta da cor preta porque a gente usa preto para nomear várias coisas que são ruins: “a coisa está preta”, “o lado negro da força”, etc. e que isso é jeito muito errado de falar, porque faz a gente achar que pessoas de cor preta são ruins. Conforme a conversa avançar, você pode perguntar como ele se sentiria se os colegas pensassem isso da cor dele também.
Como as crianças maiores podem se posicionar diante de um ato de racismo na escola?
Em se tratando de crianças brancas maiores, que já sabem o que é racismo, elas podem nomear para o outro colega que a atitude dele foi racista, explicar porque, e cobrar reparação. Podem sugerir que esse tema seja debatido na escola – sempre uma boa estratégia. E podem cuidar do colega negro que passou por essa situação, que certamente estará precisando de acolhimento.
Meus filhos não têm nenhum amigo negro (nem eu). O que fazer?
Dependendo da classe social em que você está, isso é bem comum. Isso porque, no Brasil, quanto mais você ascende socialmente, mais branco vai ficando seu círculo social. Como furar essa bolha branca? Diversificando os lugares que vocês frequentam aos finais de semana, debatendo políticas de inclusão na escola, e trazendo referências negras positivas para crianças: bonecos, livros, desenhos…
Adotei e meu filho é negro, e eu não sou. Sinto medo dele sofrer, como proteger?
Esse é um tema delicado. Tem um livro que gosto muito sobre o tema das famílias interraciais, Famílias Inter-raciais: tensões entre cor e amor. Os pais sempre querem proteger os filhos dos sofrimentos, mas sabemos que é impossível. Em se tratando de racismo, então… Mas, quanto mais conhecimento você tiver, mais você saberá identificar as violências sutis: ler sobre racismo, branquitude, leis, cobrar da escola o ensino de cultura africana, dizer para ele que te conte caso alguém fale qualquer coisa sobre os traços físicos dele (cabelo, cor da pele, boca) e dizer para ele que isso é racismo. E se ele sofrer algum tipo de preconceito, nomear como racismo e pedir reparação. Assim você estará ensinando a ele que ninguém tem o direito de ofendê-lo por conta da cor. Além disso, acho importantíssimo que possamos ensinar as coisas boas de ser negro: aprender a cuidar dos cabelos dele, falar dos heróis negros, contar história da África e suas descobertas tão importantes para a ciência… Enfim, mostrar negros fora do estereótipo servil e desvalido. Só de ter uma família com esse tipo de preocupação, isso já conta que ele esta muito bem assistido!
Livros infantis que abordam o tema?
- Sulwe
- A cor de Coralina
- Amora
- Pequeno Príncipe Preto
- Vovó Mandela
- Obax
O perfil no Instagram @criandocriancaspretas tem uma loja online com vários outros títulos!
Para os pais, recomendo o livro Pequeno manual antirracista, da Djamila Ribeiro. E o curso gratuito do Senac sobre educação antirracista.
Dicas de entretenimento com protagonistas negros?
Para famílias com crianças pequenas:
- A Princesa e o Sapo
- Criando Dion (Netflix)
- Hair Love
- Nana & Nilo
Para famílias com crianças maiores e adolescentes:
- Pantera Negra
- O menino que descobriu o vento
- A procura da felicidade
- A última abolição (documentário ótimo para escolas!)
- Homecoming – A film by Beyoncé
- Felicidade por um fio
Para os adultos:
- Raça
- American Son
- Django Livre
- Estrelas Além do Tempo
- Olhos que Condenam
- Arremesso Final
- Dear White People
- A vida e história de Madam C. J. Walker
- O povo contra O. J. Simpson
- Minha História
E o site Geledes tem uma lista com mais de 100 filmes!
Sobre o Bloom
Somos um benefício corporativo que revoluciona a forma como empresas cuidam de mães e pais que trabalham. Por meio de uma plataforma de serviços digitais que apoia a jornada da parentalidade, promovemos a orientação personalizada às famílias e melhores práticas de gestão para empresas conscientes.
Conectamos mãe e pais a uma rede de pediatras, obstetras, doulas, nutricionistas, psicólogos, orientadores de carreira e outros profissionais. E apoiamos gestores a entender melhor como lidar com esse mundo novo que é uma família.
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